domingo, 3 de abril de 2011

Pesquisadores de Harvard revelam ter encontrado"ponto fraco" do HIV



Segundo a mitologia grega, Aquiles era um guerreiro protegido pelos deuses. De acordo com a tradição, ele teria sido mergulhado no Rio Estige, o que teria tornado seu corpo inatingível. O herói só foi derrotado quando seus inimigos descobriram seu único ponto fraco: o calcanhar (a única parte do corpo que teria ficado de fora do mergulho no Estige). Década após década, o vírus HIV tem se comportado como uma espécie de Aquiles. As mais diversas formas de combate à infecção já foram tentadas, sem nunca conseguirem impedir a contaminação pelo vírus causador da Aids, doença que atinge cerca de 60 milhões de pessoas ao redor do mundo. Cientistas da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, porém, anunciaram ontem ter descoberto o calcanhar de aquiles do HIV. Segundo os pesquisadores, uma região do vírus conhecida como V3 loop é vulnerável à ação de algumas células do sistema de defesa do organismo. No teste com macacos, 100% dos animais ficaram imunizados depois de ingerirem os anticorpos que agem especificamente nessa região do vírus.

Os pesquisadores suspeitaram que a região poderia ser a chave para o desenvolvimento de uma vacina quando perceberam que, quando o vírus era atacado nesse ponto, não conseguia infectar as células e acabava morrendo. “Nossos colaboradores tinham isolado um anticorpo que foi capaz de se ligar ao V3 loop e foi aí que começamos nossos primeiros experimentos”, conta a pesquisadora de Harvard Ruth Ruprecht, em entrevista ao Correio. “O anticorpo bloqueou totalmente a replicação do HIV nos testes feitos em células em cultura, o que nos deixou animados para prosseguir a pesquisa”, completa a coordenadora do estudo, publicado na edição de abril do periódico especializado PLoS One.

Apesar de ser genericamente chamada apenas de Aids, a doença possui centenas de variações. As variáveis são agrupadas em subtipos, os chamados clados. No estudo americano, foi utilizado o subtipo C. A escolha não foi aleatória. É essa variação da doença a responsável por cerca de 60% dos casos ao redor do mundo, em especial na África subsaariana, onde a doença é endêmica. “Nós já sabiamos que os anticorpos agiriam no tipo AG, pois essa era a variação da doença que o paciente doador dos anticorpos tinha”, conta Ruth. O desafio dos pesquisadores era descobrir se o mesmo efeito ocorreria em outras variantes da doença, condição essencial para o desenvolvimento de uma vacina que seja completamente segura e mais amplamente eficaz.

O segundo passo foi fazer o estudo com cobaias. Foi escolhida uma espécie de macaco asiático, por sua semelhança genética com os humanos. Os pesquisadores injetaram os anticorpos humanos em metade do grupo de animais. Posteriormente, todos os indivíduos foram submetidos ao vírus HIV. Entre aqueles que receberam os anticorpos que agem na região V3 loop, nenhum foi infectado pelo vírus, mesmo se tratando de um clado diferente daquele que o anticorpo foi originalmente produzido para combater — nesse caso, o tipo AGH.

Foi a primeira vez que a contaminação pelo vírus foi barrada em testes com animais. Apesar disso, os pesquisadores recomendam cautela. Um dos problemas encontrados na pesquisa é o baixo período de imunização, pois poucos dias depois das doses de anticorpos os macacos voltaram a ficar desprotegidos contra o HIV. “De qualquer forma, é um grande passo para o desenvolvimento de uma vacina contra a Aids”, opina a pesquisadora americana.

Barreiras

Um dos grandes empecilhos para o desenvolvimento de uma vacina contra o vírus é o caráter mutante da doença. Basta que uma terapia tente combater o HIV que ele sofre uma espécie de mutação, mantendo-se imune à ação do sistema de defesa humana. Essa é uma das razões para os pesquisadores acreditarem que as terapias que miram especificamente a região V3 loop sejam tão promissoras. “Essa é uma região que, independentemente das mutações que o vírus venha a sofrer, permanece intacta. Assim, não há a possibilidade de uma modificação na estrutura do HIV tornar uma vacina desse tipo ineficaz”, explica Fausto Stauffer, virologista e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB).

Outra vantagem apontada por Stauffer para a estratégia que mira essa região do vírus é a sua função no momento que o HIV ataca a célula. “A V3 loop integra a superfície do vírus e tem uma função importante no processo de ligação do vírus com a célula humana”, explica o especialista. Assim, se o anticorpo age no momento em que a célula está sendo infectada, ele impede sua contaminação sem causar danos ao corpo humano. “É uma estratégia que não tem efeitos colaterais”, completa o pesquisador.

O próximo passo da pesquisa de Harvard é justamente criar um método de focalizar as respostas do sistema imunológico do corpo no calcanhar de aquiles do vírus. O teste em humanos também deve ser demorado. Diferentemente do que foi feito com as células e com os macacos, não é viável expor intencionalmente pessoas ao vírus. Nesse caso, é preciso usar os anticorpos e monitorar os pacientes durante anos, até obter dados concretos sobre quais foram infectados e quais não. Quanto tempo isso vai demorar? “Essa é uma questão importante e que, infelizmente, ainda é difícil de responder neste momento”, afirma a pesquisadora de Harvard Ruth Ruprecht.

O estudo

Entenda a pesquisa da Universidade de Harvard que encontrou uma região do vírus causador da Aids vulnerável à ação de anticorpos humanos.

» Os pesquisadores já sabiam que um tipo específico de anticorpo, quando atinge uma região do vírus conhecida com V3 loop, consegue destruí-lo, impedindo a contaminação das células.

» O desafio era saber se o mesmo efeito ocorre quando o anticorpo atinge a região V3 loop de outros tipos de vírus. A imensa quantidade de variantes do vírus é um dos empecilhos para a criação de uma vacina contra a doença.

» O primeiro passo da pesquisa foi a produção de um anticorpo monoclonal, ou seja, um preparado de milhões de anticorpos idênticos retirados de um paciente portador do HIV da variante AG da doença.

» Os pesquisadores aplicaram, em laboratório, esses anticorpos em células expostas ao HIV do tipo C, que responde por 60% dos casos do mundo e para o qual os anticorpos não estavam originalmente preparados para combater.

» O resultado foi positivo: quando os anticorpos atacaram a região V3 loop do vírus, eles conseguiram barrar a contaminação das células, mesmo não se tratando do subtipo AG, o que estavam preparados para combater. » O passo seguinte foi realizar o mesmo procedimento em cobaias. Um grupo de macacos asiáticos, após receberem doses de anticorpos, foram expostos ao vírus causador da Síndrome da Imunodeficiência Símia, uma variação do HIV que infecta macacos. O vírus possui V3 loops semelhantes aos contidos no HIV humano.

» Nenhum dos macacos que recebeu a dose de anticorpos foi contaminado pela Aids símia. Os macacos que não receberam os anticorpos, por sua vez, viveram uma situação inversa: todos contraíram o HIV.
(Max Milliano Melo - Correio Braziliense)

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