terça-feira, 7 de agosto de 2012

"Gabriela na Globo: Jorge Amado para iletrados".

"Jorge Amado não deixou de ser um homem de esquerda e fez da literatura uma ferramenta de conscientização dos leitores"



Sérgio Escovedo*
O projeto essencial da televisão brasileira é infantilizar-idiotizar o telespectador.  Essa intenção se manifesta na quase totalidade dos programas de entretenimento, já que o jornalismo, mesmo malfeito e manipulado, não se presta a esse objetivo. Além dos programas de auditório, quase todos voltados cinicamente para o marketing-propaganda da própria emissora, ou embutindo matérias-pagas de interesse de empresas, especialmente na Rede Globo, existe uma categoria peculiar de empulhação, com a criação do mito de que existem autores de TV “inteligentes” ou “criativos”, quando na maior parte das vezes são pessoas incultas, plagiadores eméritos de obras a que o público-alvo não tem acesso e utilizam a máquina da própria emissora para incensar sua imagem, valorizar suas obras mesmo que não passem de lixo, se fazendo passar por uma espécie de inteligentzia de um meio que simplesmente não a possui. Neste caso estão incluídos todos os autores de novelas e séries, responsáveis pela identidade da Globo e por suas maiores audiências e faturamento.
Um exemplo claro da manifestação dessa tendência está no ar, com a apresentação de um remake de Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, agora assinado por Walcir Carrasco, um dos piores espécimes de pseudointelectual embusteiro que pulula no pantanal de mediocridade desse meio. Ao transformar Gabriela num folhetim erótico de terceira categoria, o autor está traindo a memória do escritor Jorge Amado, no ano do seu centenário, e demonstrando cabalmente que não teve capacidade sequer de entender o livro, ou de ao menos buscar uma alternativa criativa para apresentar a essência da obra. Da forma que vai ao ar, Gabriela e Jorge Amado são reduzidos à categoria de pornografia glamourizada, o que constitui uma ofensa ao escritor, que apesar de não representar um dos maiores  nomes em nossa literatura, foi essencialmente criativo e inovador.  Tudo que há de importante nessa obra foi deixado de lado, substituído por lugares-comuns de tramas para adolescentes ou incultos, uma visão grosseira e equivocada de um universo que Amado soube representar.
Gabriela representa muito na obra de Jorge Amado. O romance marca o fim do seu projeto político de esquerda, foi escrito logo após os acontecimentos que mostraram ao mundo o que foi o stalinismo (não esquecer que Amado recebeu o Prêmio Stalin na sua fase anterior) e sua reimersão  no universo popular do Brasil, de onde brotariam seus grandes sucessos de público. Apesar disso, o livro é essencialmente uma metáfora da liberdade, uma feroz crítica ao coronelismo e às convenções da classe média. Jorge Amado não deixou de ser um homem de esquerda (o livro é de 1958) e fez da literatura uma ferramenta de conscientização dos leitores – que se multiplicaram a partir desse grande sucesso. Para o leitor atento isso fica muito claro em vários trechos e até na apresentação dos capítulos (por exemplo, no capítulo quarto, “O Luar de Gabriela” , seguido de “( Talvez uma criança, ou o povo, quem sabe?)” . Num trecho escolhido ao acaso, a ideia da metáfora Gabriela-libertação do povo se reforça: O personagem João Fulgêncio diz a Nhô-Galo: “...Ela tem qualquer coisa que ninguém tem. Você não viu no Ano Novo? Quem arrastou todo mundo para a rua, para dançar reisado? Creio que é essa força que faz as revoluções, que promove as descobertas. Pra mim, não há nada de que eu goste tanto como de ver Gabriela no meio de um bocado de gente. Sabe no que penso? Numa flor de jardim, verdadeira, exalando perfume, no meio de um bocado de flores de papel...”
Em outras palavras, para Jorge Amado, Gabriela era um mistério, uma utopia poética, e talvez a chave para a revolução no Brasil, um sonho da ascensão das classes populares ao protagonismo social através da “brasilidade” , mesmo que incluísse o erotismo e a amoralidade. Amado zomba das convenções da classe média de forma incisiva, mostrando a personagem ora como objeto de desejo e luxúria dos homens poderosos, ora como a mulher casada, entediada, que trai o marido simplesmente porque ela está muito além desse sistema social que transforma as mulheres em reprodutoras e submissas a um padrão machista-reacionário que simboliza o poder do mais forte. Ela é Gabriela – a liberdade do povo. E, antecipando Foucault, o romance mostra que a história está contida no corpo. O corpo de Gabriela é livre, como deveriam ser livres os trabalhadores e todas as vítimas desse sistema.
É claro que um livro, um filme ou uma novela não devem ser teses sociológicas, mas é imprescindível captar a força dos elementos em jogo numa obra. Foi o que fez Lenin, por exemplo, ao reanalisar, à luz da revolução bolchevique, a obra de Tolstoi. É o que pode fazer um bom autor ao adaptar uma obra literária, mesmo que faça concessões ao veículo e ao meio em que se expressa. Mas o que se vê na televisão hoje é uma interpretação grotesca feita por um ignorante, um arrogante pseudointelectual que transforma em folhetim vulgar uma criação literária que poderia abrir novos horizontes para o espectador comum. Mas é evidente que a essa corja de noveleiros isso pouco importa. Seus compromissos se resumem a uma tática de enganar o público, obter audiência com recursos chinfrins, erotismo vulgar e truques do seu ofício. A pasteurização de Gabriela é um símbolo do menosprezo que esse autor, como seus colegas, têm para com a inteligência e a arte. Menosprezo que talvez se estenda à emissora em que é apresentada. No fundo, talvez eles sejam incapazes até de perceber o que fazem, de tal forma imersos nessa engrenagem de alienação e vulgaridade. Mas isso não os inocenta de contribuir para a imbecilização de um público que deveria ser respeitado. Se essa é a “homenagem” da Globo ao centenário de Jorge Amado, seria melhor que passasse em branco. Jorge Amado não merece uma vingança (sim, porque se trata de uma deformação proposital de sua obra) tão vulgar.
                                                                                          *Sérgio Escovedo é poeta e jornalista

Um comentário:

walter disse...

fantástica sua análise, me caro Escovedo!! Acho que depois de Gabriela, Amado se repetiu muito em outras obras mas de qualquer forma, ele teve uma passagem importante pela literatura brasileira, mesmo não sendo um intelectual de primeira linha, como Graciliano Ramos e Machado de Assis. Abs WALTER jr