"Jorge Amado não deixou de ser um homem de esquerda e fez da literatura uma ferramenta de conscientização dos leitores" |
Sérgio
Escovedo*
O projeto essencial da televisão brasileira é
infantilizar-idiotizar o telespectador.
Essa intenção se manifesta na quase totalidade dos programas de
entretenimento, já que o jornalismo, mesmo malfeito e manipulado, não se presta
a esse objetivo. Além dos programas de auditório, quase todos voltados
cinicamente para o marketing-propaganda da própria emissora, ou embutindo
matérias-pagas de interesse de empresas, especialmente na Rede Globo, existe
uma categoria peculiar de empulhação, com a criação do mito de que existem
autores de TV “inteligentes” ou “criativos”, quando na maior parte das vezes
são pessoas incultas, plagiadores eméritos de obras a que o público-alvo não
tem acesso e utilizam a máquina da própria emissora para incensar sua imagem,
valorizar suas obras mesmo que não passem de lixo, se fazendo passar por uma
espécie de inteligentzia de um meio
que simplesmente não a possui. Neste caso estão incluídos todos os autores de
novelas e séries, responsáveis pela identidade da Globo e por suas maiores
audiências e faturamento.
Um exemplo claro da manifestação dessa tendência está no ar,
com a apresentação de um remake de Gabriela,
cravo e canela, de Jorge Amado, agora assinado por Walcir Carrasco, um dos
piores espécimes de pseudointelectual embusteiro que pulula no pantanal de
mediocridade desse meio. Ao transformar Gabriela
num folhetim erótico de terceira categoria, o autor está traindo a memória
do escritor Jorge Amado, no ano do seu centenário, e demonstrando cabalmente
que não teve capacidade sequer de entender o livro, ou de ao menos buscar uma
alternativa criativa para apresentar a essência da obra. Da forma que vai ao
ar, Gabriela e Jorge Amado são
reduzidos à categoria de pornografia glamourizada, o que constitui uma ofensa
ao escritor, que apesar de não representar um dos maiores nomes em nossa literatura, foi essencialmente
criativo e inovador. Tudo que há de
importante nessa obra foi deixado de lado, substituído por lugares-comuns de
tramas para adolescentes ou incultos, uma visão grosseira e equivocada de um
universo que Amado soube representar.
Gabriela representa muito na obra de Jorge
Amado. O romance marca o fim do seu projeto político de esquerda, foi escrito
logo após os acontecimentos que mostraram ao mundo o que foi o stalinismo (não
esquecer que Amado recebeu o Prêmio Stalin na sua fase anterior) e sua
reimersão no universo popular do Brasil,
de onde brotariam seus grandes sucessos de público. Apesar disso, o livro é
essencialmente uma metáfora da liberdade, uma feroz crítica ao coronelismo e às
convenções da classe média. Jorge Amado não deixou de ser um homem de esquerda
(o livro é de 1958) e fez da literatura uma ferramenta de conscientização dos
leitores – que se multiplicaram a partir desse grande sucesso. Para o leitor
atento isso fica muito claro em vários trechos e até na apresentação dos
capítulos (por exemplo, no capítulo quarto, “O Luar de Gabriela” , seguido de
“( Talvez uma criança, ou o povo, quem sabe?)” . Num trecho escolhido ao acaso,
a ideia da metáfora Gabriela-libertação do povo se reforça: O personagem João
Fulgêncio diz a Nhô-Galo: “...Ela tem qualquer coisa que ninguém tem. Você não
viu no Ano Novo? Quem arrastou todo mundo para a rua, para dançar reisado?
Creio que é essa força que faz as revoluções, que promove as descobertas. Pra
mim, não há nada de que eu goste tanto como de ver Gabriela no meio de um
bocado de gente. Sabe no que penso? Numa flor de jardim, verdadeira, exalando
perfume, no meio de um bocado de flores de papel...”
Em outras palavras, para Jorge Amado, Gabriela era um mistério, uma utopia poética, e talvez a chave para
a revolução no Brasil, um sonho da ascensão das classes populares ao
protagonismo social através da “brasilidade” , mesmo que incluísse o erotismo e
a amoralidade. Amado zomba das convenções da classe média de forma incisiva,
mostrando a personagem ora como objeto de desejo e luxúria dos homens
poderosos, ora como a mulher casada, entediada, que trai o marido simplesmente
porque ela está muito além desse sistema social que transforma as mulheres em
reprodutoras e submissas a um padrão machista-reacionário que simboliza o poder
do mais forte. Ela é Gabriela – a liberdade do povo. E, antecipando Foucault, o
romance mostra que a história está contida no corpo. O corpo de Gabriela é livre,
como deveriam ser livres os trabalhadores e todas as vítimas desse sistema.
É claro que um livro, um filme ou uma novela não devem ser
teses sociológicas, mas é imprescindível captar a força dos elementos em jogo
numa obra. Foi o que fez Lenin, por exemplo, ao reanalisar, à luz da revolução
bolchevique, a obra de Tolstoi. É o que pode fazer um bom autor ao adaptar uma
obra literária, mesmo que faça concessões ao veículo e ao meio em que se
expressa. Mas o que se vê na televisão hoje é uma interpretação grotesca feita
por um ignorante, um arrogante pseudointelectual que transforma em folhetim
vulgar uma criação literária que poderia abrir novos horizontes para o
espectador comum. Mas é evidente que a essa corja de noveleiros isso pouco
importa. Seus compromissos se resumem a uma tática de enganar o público, obter
audiência com recursos chinfrins, erotismo vulgar e truques do seu ofício. A
pasteurização de Gabriela é um
símbolo do menosprezo que esse autor, como seus colegas, têm para com a
inteligência e a arte. Menosprezo que talvez se estenda à emissora em que é
apresentada. No fundo, talvez eles sejam incapazes até de perceber o que fazem,
de tal forma imersos nessa engrenagem de alienação e vulgaridade. Mas isso não
os inocenta de contribuir para a imbecilização de um público que deveria ser
respeitado. Se essa é a “homenagem” da Globo ao centenário de Jorge Amado,
seria melhor que passasse em branco. Jorge Amado não merece uma vingança (sim,
porque se trata de uma deformação proposital de sua obra) tão vulgar.
*Sérgio Escovedo é poeta e jornalista
Um comentário:
fantástica sua análise, me caro Escovedo!! Acho que depois de Gabriela, Amado se repetiu muito em outras obras mas de qualquer forma, ele teve uma passagem importante pela literatura brasileira, mesmo não sendo um intelectual de primeira linha, como Graciliano Ramos e Machado de Assis. Abs WALTER jr
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