Os estímulos ao aumento da utilização da tecnologia no campo para aumentar a produtividade rural e a concessão de crédito apenas para a produção da agricultura sustentável, reduzindo o uso de agrotóxicos nas plantações, são os principais fatores que podem ajudar o Brasil a proteger a diversidade biológica e a cumprir as chamadas Metas de Aichi, acordo global para a conservação e uso da biodiversidade. A opinião é de Braulio de Souza Dias, secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, em entrevista ao Jornal da Ciência. Ele defende também a incorporação do valor dos recursos florestais e hídricos e impacto socioambientais nas contas públicas, uma das principais metas de Aichi.
Pelo que entende o secretário, há necessidade de se adotar estímulos econômicos, como operações de crédito agrícola casadas com a garantia de adoção de sustentabilidade na agricultura, já que nem todos os agricultores são receptivos ao uso de tecnologia no campo. Para ele, só o avanço tecnológico no campo disponível para todos produtores rurais por intermédio da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), pode aumentar a produtividade agrícola, evitar novos desmatamentos e reduzir emissões de gás estufa na atmosfera.
"Hoje já temos sementes de soja que recebem inoculação de bactérias que absorvem o nitrogênio do ar", exemplifica.
Segundo ele, a polêmica no âmbito do novo Código Florestal reflete os dilemas sobre políticas públicas no País, já que no passado não foram adotadas medidas efetivas para assegurar as eficácias do Código Florestal que foi criado na década de 1930.
Ainda assim, ele cita avanços obtidos na década de 1970, época em que foi criado o programa de reflorestamento permitindo que a produção nacional de papel seja sustentável. "Esse foi um avanço importante. Mas, de novo, não foram adotadas todas as diretrizes de sustentabilidade rural", declara.
Ao contrário do processo de tramitação na Câmara dos Deputados, o secretário disse que no Senado Federal o governo está "tentando" buscar o equilíbrio nas propostas de mudanças do Código Florestal. "O governo reconhece o direito de respeitar situações anteriores. No Senado, as discussões estão sendo mais construtivas e menos emocionais no sentido de corrigir os problemas. O desafio, agora, é a Câmara reconhecer ajustes feitos no Senado", disse.
No que se refere às Metas de Aichi, o secretário destaca a importância da comunidade científica de colaborar com o governo na implementação do acordo internacional. Ele vê, porém, necessidade de diversificar os recursos destinados às pesquisas, concentrados nos grandes centros; e fortalecer e estimular a criação de novos laboratórios.
As Metas de Aichi são um acordo entre 193 países realizado em Nagoya, na província de Aichi (Japão), no ano passado, para a conservação e uso da biodiversidade mundial. Pelo acordo internacional, o prazo para os países signatários apresentarem suas estratégias é até outubro de 2012, antes da 11ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP 11 da CDB), na Índia. O Ministério do Meio Ambiente vem fazendo um esforço para institucionalizar a estratégia brasileira e apresentá-la na Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável (Rio+20). Para isso, vem realizando uma série de diálogos com a sociedade brasileira - chamados de "Diálogos sobre a Biodiversidade: construindo a estratégia brasileira para 2020".
Jornal da Ciência (JC): Das 20 metas de Aichi, quais são as mais relevantes para o Brasil?
Braulio de Souza Dias (BSD): Todas são importantes. Elas estão agrupadas em cinco objetivos estratégicos. Um deles prevê estímulos ao engajamento da sociedade (civil) nas discussões e incorporação da valoração da biodiversidade nas contas nacionais. Hoje não existe nada, além do estudo (em curso) do IBGE para mensurar o valor dos recursos florestais e hídricos no Brasil. Atualmente não se quantifica perdas para biodiversidade na realização de obras, os impactos socioambientais.
Espera-se que as empresas internalizem a questão da valoração da biodiversidade e as políticas de governo para que as metas sejam efetivadas. Hoje corremos muito atrás de prejuízos causados por empresas e políticas públicas.
Existem propostas nacionais para redução do desmatamento. A meta global é reduzir 50%, em média, até 2020. E quando possível atingir desmatamento zero. Outra meta é a despoluição das águas e redução da pesca predatória.
Outro alvo das Metas de Aichi é a redução das espécies ameaçadas pelo homem. Essa é desafiadora, pois o Ministério do Meio Ambiente reconhece mais de 670 espécies de animais e 470 espécies de plantas ameaçados. É por isso que estamos promovendo uma série de consultas à academia científica e ao governo para atualizar os dados.
Além disso, estamos ampliando os esforços de conservação de espécies, uma delas é a baleia jubarte existente em áreas protegidas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Hoje temos mais de 150 espécies ameaçadas com planos de ação para a conservação dessas espécies. Queremos atingir 100% das espécies ameaçadas até o fim deste governo.
A conservação da onça-pintada está em processo de declínio em todo território nacional, ela só sobrevive no Pantanal, na Amazônia, na Caatinga, onde há grande território para ela viver e reproduzir, já que ela requer área mínima de 250 a 300 mil hectares para sobreviver. Infelizmente a onça-pintada está desaparecendo. O mesmo acontece com a harpia (gavião real), a maior águia do Brasil e uma das maiores do mundo, que também precisa de um grande território para sobreviver.
Outra meta é a redução de erosão genética (perda da variabilidade genética). É preciso haver variedade de genes para que as espécies se adaptem às novas condições climáticas. Para isso, é preciso ampliar os esforços de conservação em áreas protegidas, como unidades de conservação, Áreas de Preservação Permanente (APP) e reservas legais.
Outra estratégia é a criação de bancos de conservação de sementes (ameaçadas), com tecnologias modernas, em câmaras frias (artificiais) em baixas temperaturas. Na Noruega, por exemplo, existe um dos maiores bancos de germoplasma do mundo em condições de frio extremo.
Outra meta é a conservação de recifes de coral. No Brasil, os recifes são mais abundantes na costa do Nordeste, principalmente em Abrolhos. Eles são um dos mais vulneráveis às mudanças climáticas. E com o aquecimento global e com CO2 na atmosfera o mar fica mais ácido e isso inviabiliza a formação de calcário prejudicando muitas espécies construtoras de recifes. A previsão é de que nas próximas décadas os recifes de corais desapareçam. Isso já está ocorrendo em alguns mares, como no mar vermelho. Isso não é ficção científica. Um terço da biodiversidade desaparecerá em decorrência do aquecimento global, segundo alguns órgãos internacionais (IPCC).
JC: As Metas de Aichi também envolvem a agricultura sustentável?
BSD: Sim. As metas de Aichi incluem todo o aproveitamento da biodiversidade. Aquicultura, agricultura e silvicultura terão de se modernizar para garantir sustentabilidade. Hoje o Brasil é campeão em agrotóxicos no mundo. Embora a China e EUA produzam mais (produtos agrícolas) eles consomem menos agrotóxicos. Nesses dois países o consumo é mais dosado. Já aqui a Lei de Agrotóxico não é cumprida. Ainda se consegue comprar o produto sem a comprovação de receituário, o que leva ao abuso do uso de agrotóxico.
Há descontrole e abuso do uso sem orientação técnica. Além da saúde humana, isso prejudica também o meio ambiente.
JC: O Brasil já ratificou o protocolo de Nagoya, aprovado no ano passado, para assegurar o uso da biodoversdidade? Qual é a sua importância para o Brasil?
(O acordo internacional estabelece um regime internacional sobre acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios e para entrar em vigor ele precisa ser ratificado por 50 países).
BSD: O País ainda precisa fazer ajustes para incorporar o novo marco legal global de Nagoya. A representante do Brasil na ONU assinou a carta com a intenção de ratificar o protocolo. E o Congresso Nacional deve ratificá-lo antes da Rio + 20. Mas, nesse caso, a meta de Aichi (Meta 16) para ratificar e começar a implementação do protocolo de Nagoya é até 2015. Ou seja, esse é o prazo para que os países atualizem sua legislação.
Isso trará impactos para o País. O novo protocolo promoverá a negociação para viabilizar o intercambio de recursos genéticos. Hoje somos grandes provedores de recursos genéticos de outros países. E o novo marco legal é flexível, estabelece regras gerais. Ou seja, todo país deve ter acesso aos recursos genéticos, desde que haja repartição de benefícios.
JC: Quais são as fontes de recursos para o Brasil implementar as Metas de Aichi?
BSD: A meta é que todos os países ampliem as fontes de recursos para acessar conhecimento para melhorar a biodiversidade. Isso vai ser discutido na COP 11 na Índia. No Brasil, a gente trabalha com várias fontes de recursos. Por exemplo, o Brasil tem conseguido recursos para unidades de conservação, mas a os recursos disponíveis são insuficientes para garantir a conservação da biodiversidade já que temos de fazer planos de manejo. Queremos chegar na COP 11 já sabendo de quanto precisamos para isso.
JC: Como o governo pretende trabalhar para que a sociedade civil chegue a um consenso sobre a conservação da biodiversidade brasileira?
BSD: Uma das soluções é o aumento da utilização da tecnologia no campo, via Embrapa e Universidades, para a produção sustentável da agricultura, com menos aplicação de agrotóxico nas plantações, e que garanta mais produtividade. Hoje já temos sementes de soja que recebem inoculação de bactérias que absorvem o nitrogênio do ar. Entendemos a necessidade de incorporar novas tecnologias no campo.
No passado, o aumento da produção agrícola no Brasil só era viável pelo avanço da área produtiva, cenário que vem mudando com o passar dos anos. Nem todo agricultor é receptivo ao uso da tecnologia. Nesse caso, é preciso estabelecer estímulos econômicos (operações de financiamento agrícola casadas com a garantia de aplicar na sustentabilidade no campo). O Banco Central, recentemente, liberou crédito agrícola para redução de emissão de gás de efeito estufa. O governo, futuramente, deve conceder financiamento apenas quando a agricultura for sustentável.
JC: Como assegurar o cumprimento das metas globais frente à realidade brasileira no que se refere à proteção de áreas terrestres e marinhas em unidades de conservação, considerando que existe uma forte queda-de-braço entre o agronegócio e os ambientalistas?
BSD: Um falso dilema prevaleceu nas discussões do Código Florestal, pois não existe agricultura se não houver agentes de controle biológicos (inimigos de pragas) e organismos para garantir a fertilidade do solo. Se não existir um mínimo de conservação a agricultura deixa de existir.
Aqui no Brasil existem muitas paisagens degradadas que perderam sua função. Por exemplo, no Vale do Paraíba no século XIX e XX existiam grandes plantações de café. O solo, porém, perdeu-se diante da erosão pelas chuvas. O solo foi deslocado para os rios que tiveram sua capacidade comprometida. Temos muitos exemplos de produção predatória em que se perdeu a cobertura vegetal. Esse é o futuro de toda produção agrícola se não houver conservação. Toda produção precisa ser acompanhada de conservação.
JC: Como o senhor avalia o projeto do Código Florestal, em tramitação no Senado Federal? Como conciliar suas alterações com a conservação da biodiversidade brasileira, como a redução da poluição, proteção de áreas terrestres e de águas continentais em unidades de conservação e redução significativa da taxa de perda de habitats nativos?
BSD: O Código Florestal exemplifica os dilemas sobre políticas publicas, ao expor conflitos de interesse entre conservacionistas e ruralistas. O Código Florestal é uma das principais legislações do Brasil, pioneiro na conservação do meio ambiente, criado na década de 1930, justamente pelo Ministério da Agricultura preocupado com o desmatamento. Foi o próprio setor agrícola que o implantou, preocupado com a erosão do solo, com os recursos hídricos e com a oferta de madeira. Infelizmente, porém, não foram adotadas condições efetivas para a plena implementação do cumprimento do Código.
Um dos problemas do Brasil é não considerar nas contas públicas o valor das riquezas das florestas, o que impede seu acompanhamento mais de perto. Agora poderemos acompanhar melhor o patrimônio público, também, pela implementação das Metas de Aichi que preveem isso. Ai teremos de mudar nosso comportamento.
Em 1965 o Código foi reformulado pelo Ministério da Agricultura, na época não existia o Ministério do Meio Ambiente. Na década de 1970 foi criado um grande programa de reflorestamento que permitiu que toda produção de papel hoje no Brasil seja sustentável. Esse foi um avanço importante. Mas, de novo, não foram adotadas todas as diretrizes de sustentabilidade rural.
O Brasil nunca criou um órgão de extensão florestal, por exemplo. Alguns estados possuem institutos de florestas. No geral, porém, há carência de especialistas e de biólogos para apoiar a conservação de áreas de preservação permanentes. Falta muito conhecimento.
Embora proprietários não possam se esquivar da responsabilidade pelo não cumprimento da legislação florestal, parte da culpa é dos governos passados que não se prepararam para isso. Ou seja, não pode se culpar apenas ruralistas e agricultores pelo não cumprimento do Código Florestal no passado. Até hoje, por exemplo, o Brasil não tem um cadastro de propriedades rurais, o que dificulta mapear e fazer seus controles.
Mas começamos a avançar graças ao monitoramento via satélites, pelo Inpe e Ibama. Isso aumentou a consciência da população sobre os problemas sobre o desmatamento das florestas. Antigamente, o governo não acompanhava a execução do Código de perto, as multas aplicadas eram baixas, trazendo conseqüências no dia de hoje.
Infelizmente, na Câmara dos Deputados houve uma visão distorcida sobre o Código e isso prevaleceu (na hora da votação do texto). O texto na Câmara tem muitos problemas, muitas inseguranças jurídicas e prejuízos para a conservação ambiental.
Estamos, porém, tentando equilibrar isso no Senado Federal, o governo reconhece o direito de respeitar situações anteriores. Nessa casa, as discussões estão sendo mais construtivas e menos emocionais no sentido de corrigir os problemas. O desafio, agora, é da Câmara de reconhecer os ajustes feitos no Senado. Está sendo tomado cuidado no Senado para manter o equilíbrio entre os interesses ambientais e socioeconômicos.
JC: Como estimular a participação de cientistas para ajudar o Brasil a cumprir as metas globais?
BSD: Esse é um grande desafio. Na década de 1970 a produção cientifica cresceu bastante no Brasil. Com a expansão da pós graduação, hoje ela já responde por mais de 6% da literatura mundial na área do conhecimento sobre biodiversidade, principalmente na descrição de novas espécies. Mas a área científica está concentrada principalmente nas regiões Sul e Sudeste, sobretudo em São Paulo. A Amazônia, por exemplo, recebe menos de 5% dos recursos nacionais para pesquisa. É preciso melhorar a distribuição de recursos destinados à pesquisa. E é necessário fortalecer e estimular a criação de novos laboratórios. O desafio é reduzir a assimetria no Brasil. Reduzir as barreiras entre quem produz ciência e quem usa a ciência. Antes as empresas não usavam a tecnologia produzida no Brasil. Hoje, porém, elas já usam, mas ainda há resistência da academia de fazer parceria com as empresas.
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