quinta-feira, 22 de março de 2012

Outras verdades


                                                           -Sérgio Escovedo-

Um dos temas mais discutidos hoje na imprensa é a instalação da Comissão da Verdade e o julgamento dos que cometeram crimes contra a humanidade: tortura, assassinatos, seqüestros e toda a gama de iniqüidades características das ditaduras. Contrariando o senso comum e me arriscando ser apedrejado pela esquerda, sou francamente contra qualquer revisão da lei da anistia e considero a Comissão da Verdade um instrumento midiático concebido por lideranças pretensiosas, anacrônicas, sem qualquer objetivo autêntico de colaborar para o grande debate nacional – que consiste no desenvolvimento do Brasil, na melhora da economia, na busca de uma educação de alto nível, no preparo desta e das próximas gerações para um mundo que se transformou em outro totalmente distinto daquele em que vivíamos há 40 anos. Esses nostálgicos rancorosos, no fundo querem um pretexto para a vingança, querem se exibir como macacos vencedores, como no emblemático “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, agora que sua geração chegou ao poder – e não há símbolo maior dessa realidade do que a Presidente Dilma, ex-presa política, torturada e condenada pela ditadura, hoje senhora absoluta do poder.
            O mais paradoxal de minha opinião é que pertenço exatamente a essa geração e vivi todas as experiências tediosamente repetidas por esses ex-comunistas. Fui preso, torturado, tive que fugir do país e testemunhei a violência em estado bruto da ditadura nos anos 70, a censura, o obscurantismo, a violência institucional que os jovens de hoje mal podem imaginar, a não ser nos raros e medíocres filmes feitos sobre o período, que se valem de um sentimentalismo piegas para tentar fazer heróis ou comungar sentimentos de revolta sobre o antigo “inimigo”.
         A razão mais forte que me move, além do fato de não ser “comunista” e nunca ter usufruído das “reparações” que os governos FHC e Lula promoveram (sim, eu teria direito a indenização e ganharia meus 15 minutos de holofotes maldizendo os antigos militares) é que eu penso o mundo como uma transmutação de valores. Aquele passado e seus personagens já não fazem parte do real, e as iniciativas para “ressuscitá-los” me parecem apenas uma tentativa de gente da minha geração de se autopromover e buscar um “heroísmo” que impressione os outros, especialmente os mais jovens. Por isso, digo com toda a força de minha personalidade, não concordo uma vírgula com esses ex-comunistas nostálgicos e com suas razões, geralmente descritas de forma tosca, simples engodo recheado de lugares comuns sobre “terror de estado” e “justiça em nome da democracia”. Nunca me senti um herói e considero apenas, com orgulho, que tive coragem de resistir a uma situação desumana, que me juntei a jovens que não poderiam tolerar um sistema autoritário e injusto.
         Lamento, meus ex-companheiros, mas nada disso existe mais. O sonho acabou, a ditadura acabou e os jovens que lutaram contra o regime autoritário também acabaram. Nessas carcaças que espumam ódio e “exigem” represálias há apenas migalhas de ressentimento, doentes que não aceitam a mudança, saber que os tempos mudam e chega um hora em que temos que confrontar nosso passado com realismo, sem mitologia, sem ressentimentos. Esta é a única fórmula que concebo para um intelectual que aspire verdadeiramente o melhor para seu país, para essas novas gerações que não vivenciaram os tempos de horror. Discutir se fomos heróis ou apenas navegamos na contracorrente impulsionados por nossa juventude e senso de justiça, tem seus méritos, mas não pode servir de justificativa para querermos resgatar um tempo que não existe mais, que se desmanchou no ar, um tempo irresgatável, como tudo na vida que ficou no passado. Ser nostálgico, neste caso, é ser reacionário, é querer perpetuar um estado de coisas que não existe mais. E infelizmente, usando de hipocrisia, enganando os jovens, criando fantasias sobre o que realmente aconteceu.
            A ditadura brasileira teve todos os aspectos negativos desse tipo de regime, mas não se pode negar que o golpe de estado contra Goulart foi uma aspiração da sociedade, que as propostas desse presidente inepto iam contra os valores da maioria da população – que apoiou entusiasticamente os militares. Estudar esse período vendo apenas a ruptura do regime democrático é uma infantilidade sociológica, coisa de tolos ou enganadores. Em todos os tempos, grupos sociais derrubaram governos impopulares ou que ameaçavam seus interesses. A sociedade se mobilizou a favor dos militares e naturalmente a perseguição aos inimigos do regime se instaurou com os métodos repressivos comuns às ditaduras. Prisões, censura, tortura, assassinatos, tudo isso fez parte dos métodos do regime, assim como a delação e o oportunismo dos que apoiavam o novo governo. Serão esses oportunistas, covardes delatores, também alvo da sanha revanchista?
        Foi neste contexto que surgiram as organizações ditas “subversivas”, formadas em sua maioria por jovens da classe média, que sonhavam em depor o novo governo e instaurar um regime de esquerda. Hoje tudo isso parece um sonho, ou um pesadelo, pois é evidente que a correlação de forças não favorecia os esquerdistas e sua resistência à brutal repressão foi um ato de heroísmo e idealismo, dentro do panorama nacional e internacional. Jovens são, ou deveriam ser, sonhadores, idealistas, revolucionários, capazes de arriscar sua vida por uma causa. Nós fizemos isso com toda nossa energia e a maioria pagou caro pela ousadia. Os militares venceram a guerra - eis uma verdade simplória - e com apoio da ampla maioria da população. Os ditadores, que hoje aparecem pintados como monstros, eram populares, satisfaziam aos desejos da burguesia e levaram a cabo seus planos com arrogância e apoio das massas. Os esquerdistas nunca tiveram apoio popular, a não ser o espetaculoso, caso de seqüestros e assaltos a bancos, e ações isoladas contra as forças da repressão. Claro que uma parte da população se mobilizou a favor deles, que advogados desafiaram o regime para combater a barbárie, mas nada disso significa que os que lutaram contra a ditadura representavam a maioria da população brasileira. Inútil buscar culpados na conjuntura de um sistema: os brasileiros aceitaram as ditaduras, por temor ou oportunismo. Será que uma Comissão da Verdade pretende punir todos os que apoiaram os militares?
         Ao contrário do que hoje proclamam esses comunistas nostálgicos, figuras de museu ridículas 20 anos após a queda do comunismo, houve um diálogo constante entre as forças de oposição e o regime militar, a partir da década de 70. Os militares cederam, sabemos todos, mas não foi por falta de canhões ou organismos de repressão. Os mais conscientes, em diálogo com expoentes da oposição, por fim entenderam que o regime militar implodiu, não era mais capaz de atender às exigências de um novo tempo. Veio a anistia, ainda sob as patas de Figueiredo, um boçal que prometeu “prender e arrebentar” quem fosse contra a abertura política, mas que cumpriu seu papel de devolver o poder aos civis e não se constrangeu ao sair pela porta dos fundos do Palácio do Planalto. Os democratas, organizados em torno dos seus líderes, tinham vencido a longa campanha contra aqueles gorilas que tomaram o poder com esperança de transformar o Brasil em potência e aniquilar de vez as resistências aos seus valores, que julgavam exeqüíveis, com a prioridade de exterminar o esquerdismo.
            A Lei da Anistia é amplamente suficiente para encerrar de vez esse período nefasto na história brasileira. Mas pretender, décadas depois, culpar os que atendiam aos clamores do seu tempo, por mais desprezíveis que tenham sido, é um retrocesso no diálogo nacional. É uma caça às bruxas de quem está no poder e se sente suficientemente forte, mesmo que de forma delirante, para mudar a história a seu favor, utilizando um reducionismo vulgar e um maniqueísmo que não faz jus à inteligência do povo brasileiro. O Brasil e os brasileiros precisam virar definitivamente essa página, conceber um novo patamar de discussões e anseios. Essa busca oportunista de um tempo perdido é tão medíocre, tão inútil, que por certo não aparecerá um Proust para reviver aqueles tempos de horror. Que fique no passado, longe de nossas preocupações, num mundo que busca o novo, uma nova revolução, que não se faz com rancores e discursos de uma retórica antiquada e inconseqüente.


2 comentários:

Gildo Henrique disse...

Caraca!

Na mosca!

Anônimo disse...

Militar que torturou tem pagar.

É uma pena que pessoas com o tempo entrem em declínio...