Batalha do Xingu
Aquilo que o ministro esconde e a mídia ajuda, é uma obra que não se compara a nenhuma outra hidrelétrica jamais construída no país, com quatro grandes barragens, duas usinas com turbo-geradores, uma represa no Xingu e cinco pequenas represas em terra firme na região da Rodovia Transamazônica, dezenas de quilômetros de diques para evitar o extravasamento da água represada, mais de 50 mil hectares alagados, outro tanto destruído pelos canteiros de obras, retirada de material rochoso, escavações de largos e longos canais, estradas e outras construções. Mais de 20 mil pessoas serão expulsas de suas moradias, a maioria delas nos bairros de Altamira, cidade que se tornará uma pequena São Paulo, cercada pelo seu próprio esgoto jogado nos vários igarapés que a cruzam antes de desaguar no Xingu, e com inundações cada vez mais destrutivas e putrefatas.
A Licença Prévia (LP) foi concedida à empresa “holding” federal de eletricidade, a Eletrobrás, e os condicionantes exigidos devem ser por ela cumpridos. Só que as empresas que vão de fato construir e operar a usina ainda não são conhecidas, nem mesmo a Eletrobrás será a sócia principal de qualquer consorcio empresarial que venha a ser formado, pois o governo Lula a proibiu de ser majoritária; pode ser até que nem esteja presente na composição acionaria, e que alguma de suas grandes filiais (como Furnas ou Chesf) seja bastante minoritária. Portanto, os capitais privados internacionais ou mesmo de origem nacional que “ganharem” a licitação –pra quem nisso acredita– estão desoneradas de qualquer obrigação ambiental.
No próprio verbete de 11 linhas que informa na LP o escopo da obra licenciada, os iluminados cometeram um ato falho, reconhecendo o que sempre foi escamoteado: que, no trecho abaixo da barragem Pimental, o Xingu terá uma vazão d’água “residual”. E a reafirmação de uma mentira: de que somente dois municípios, Vitoria do Xingu e Brasil Novo, seriam atingidos pelas conseqüências diretas da obra. Negam que os municípios de Senador Porfírio e Anapu, na outra margem da Volta Grande do Xingu, sejam prejudicados.
A licença concedida engloba a) os quatro canteiros de obras das quatro barragens; b) as linhas elétricas de alta voltagem para alimentar esses canteiros; c) as Linhas de Transmissão das duas usinas até as Subestações já existentes da Eletronorte e que permitiriam ligá-las ao sistema brasileiro interligado; d) as jazidas de retirada de rochas, areia e terra para as obras e d) as rodovias de serviço pesado que ligariam os quatro canteiros de obras à Rodovia Transamazônica, que nesse trecho ainda não é hoje asfaltada.
Nas LPs é costume colocar as exigências a serem cumpridas no verso da licença. Nesse caso, o verso tem oito paginas e 40 itens, dos quais seis deles preocupados com os planos para salvar, monitorar e reproduzir as tartarugas, e nenhum deles mencionando as 20 mil pessoas a serem expulsas.
Na exigência nº 32 , o Ibama abre mão de licenciar os alojamentos de trabalhadores, os sistemas de água, esgoto, drenagem e aterros de lixo correspondentes, todas as demais estradas, inclusive as que deveriam ser remanejadas, novos portos necessários para a obra. Esse item cita no meio dessa lista das “sobras” a licenciar, genericamente, os “ressentimentos”, que não tem qualquer previsão nem planejamento no Estudo de Impacto Ambiental, nem qualquer compromisso de que os mais de vinte mil cidadãos seriam reassentados.
No item 28, exige-se que o Incra e o Instituto de Terras do Pará se manifestem sobre os “assentamentos a serem atingidos”, ou seja, sobre os colonos que anos antes batalharam e receberam seus lotes e que devem sair. Quem sabe façam com eles o mesmo que estão fazendo as empresas que constroem a usina de Estreito, na divisa do Tocantins com o Maranhão: nada! Que deixem de ser colonos e se virem!
Uma grande novidade é a democracia racial: de tanto os críticos insistirem que milhares de índios moravam na região, fora de Terras Indígenas delimitadas, ou seja, em bairros de Altamira e nas barrancas do Xingu, o Ibama acaba exigindo, no item 19, que sejam feitos programas mitigatórios e compensatórios para essas famílias, “considerando a especificidade da questão indígena, sem no entanto gerar diferenciação de tratamento no âmbito da população da Área diretamente afetada e da Área de Influencia direta”. Ou seja: não ouviram nem consultaram ninguém decentemente, não tem porque fazer com os índios. Não tem compromisso de reassentar ninguém, nem os índios. Todo mundo tem que ser desrespeitado igual e empobrecer igual. Nem o aristocrata pernambucano Gilberto Freyre imaginou tanta igualdade de direitos nessa população miscigenada e pacífica.
Outros itens mirabolantes exigem que seja mantida pela Eletrobrás a qualidade da água nas represas –coisa que raras prefeituras e governos estaduais fazem hoje nos rios, represas e litorais brasileiros- e que seja resolvida de alguma maneira a “transposição das embarcações na barragem Pimental”. Os iluminados supõem naturalmente que as voadeiras de oito a doze passageiros e os pequenos batelões de uma tonelada que ali trafegam atualmente possam ser versáteis a ponto de vencer os pedrais e a vazão “residual” em meio aos pedrais e ilhas abaixo da barragem, depois serem guinchados gratuitamente por alguma grua e depois navegarem numa grande represa com ondas e ventos fortes, chegando sãos e salvos em Altamira no mesmo dia.
Mas o que certamente algumas ONGs conservacionistas gostaram mesmo nessa LP, está nos itens 24 e 28. O item 24 prevê a criação de três novas Unidades de Conservação Ambiental: uma tipo APA (em geral totalmente fictícia em termos de proteção, pelo Brasil afora) para as tartarugas no trecho seco da Volta Grande, outra “de Preservação permanente” numa área a escolher, que tenha cavernas importantes – cuja existência sempre foi rechaçada no EIA ; e outra, “de Uso sustentável” para conservar o ambiente dos pedrais rio acima até a foz do maior afluente do Xingu, o rio Iriri -exatamente a área prevista para a próxima destruição hidrelétrica, a usina Babaquara, agora chamada “usina Altamira”, para puxar o saco dos políticos e comerciantes da cidade. O item 28 exige a instalação, pela a Eletrobrás, de duas bases de fiscalização ambiental, flutuantes e completamente equipadas. Quem sabe essas bases servirão para fazer o que fazem as lanchas e camionetes adquiridas pelas empresas que estão construindo as obras no rio Madeira, em Rondônia: policiar e intimidar os pobres moradores ribeirinhos que insistem em continuar pescando e plantando mandioca e feijão para comer.
O que o ministro e o presidente do Ibama realmente gostaram foi de anunciar o “preço” da licença, segundo eles, a modesta quantia de R$ 1,5 bilhão, isto é, mais de 10% do valor total de investimento que o governo está anunciando ou menos da metade do que os empresários e estudiosos calculam. Nesse caso, o ministro nem esperou que a Eletrobrás fizesse a conta direitinho e apresentasse o “Valor de Referência (VR) para fins de Compensação Ambiental e as informações necessárias ao cálculo do grau de Impacto (GI) conforme o Decreto 6.848, de 14.05.2009.”
Não sabemos se o Messias do Ibama pretende obter cargos eletivos e precisaria de fundos para a campanha, mas o ministro Minc certamente sim, pois vai se desincompatibilizar ainda esse mês para concorrer. Para mim e todos os que ajudaram o Belo Monte a morrer duas vezes e ainda batalhamos para que o rio Xingu e seus moradores sejam salvos da destruição e da pobreza, e para que o dinheiro publico seja salvo da maior roubalheira já inventada, esse deputado dos coletes coloridos não merece em 2010 ser eleito nem síndico de prédio na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Oswaldo Sevá é professor no Departamento de Energia e na Pós-Graduação em Antropologia da Unicamp, estudioso de hidrelétricas há 35 anos e do projeto Belo Monte há 22 anos.
Retirado de: http://blogdaamazonia.blog.terra.com.br/2010/02/05/belo-monte-licenciar-destruir-e-meter-a-mao/
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